6.5.06

A arte pernambucana: da década de 70 ao mangue-beat

A arte moderna pernambucana passou por vários momentos do Modernismo ao movimento Manguebeat. Neste artigo, a teórica Helena Pedra mapeia a arte contemporânea localizando seus principais momentos. A década de 70 criou uma nova geração nas artes plásticas em Pernambuco, respaldada já em uma tradição construída nas anteriores. Quase todos os artistas dessa geração tinham como base para criação as informações e experiências que foram consolidadas por meio de artistas modernistas como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Além do Gráfico Amador, grupo criado por Aloísio Magalhães, que segundo Joaquim Cardozo "produziu, talvez, na época, as mais belas páginas da arte de impressão do Brasil". Ainda há o refinamento na pintura de Reynaldo Fonseca e a coragem estética de Montez Magno. Outras personalidades marcaram movimentos importantes, como o Atelier Coletivo liderado por Abelardo da Hora, que em 1954 teve a oportunidade, também, de reunir um número de artistas que são referência na arte pernambucana; e o Movimento da Ribeira, conduzido por Adão Pinheiro e Vicente Monteiro, na década de 60, responsável pelo aparecimento de José Tavares, João Câmara, José Barbosa, Maria Carmem e Tiago Amorim, entre outros. Com o Golpe Militar de 64, o movimento é abortado, mas a semente germina tornando Olinda um dos principais centros de pintura no país. No início da década de 80, os artistas criam um movimento que teve repercussão em todo o país: a Brigada Portinari, de inspiração político-contestatória e de apoio ao retorno de Miguel Arraes do exílio. Consistia numa participação coletiva, de posicionamento político, associado à obra artística e individual. Participaram desse movimento Antônio Carlos Montenegro, Fernando Lins, Aprígio, Frederico Fonseca, Bete Gouveia, Alex Montelberto, Fernando Guerra, Gil Vicente, Flávio Gadelha, Piedade Moura, Iza do Amparo, Eudes Mota e Plínio Palhano. Na década seguinte, marcada pela falta de apoio ao artista e pelo fechamento dos salões oficiais, a produção artística passou a se caracterizar pela individualização. Em meio a esse contexto ressurge a Oficina Guaianases de Gravura , criada em 1979 por João Câmara e Delano, defendida pelo artista plástico Renato Valle, que reunia artistas de diversas tendências, fazendo a gravura reassumir com força o seu espaço. A década de 90 aponta para uma tendência: a "nacionalização" das artes plásticas, que ganha reforço a partir da política cultural implementada nos museus e galerias públicas e pela ascendência do curador como agente "interventor" na obra do artista. A produção artística passa, então, necessariamente, pelas tendências de uma quase "unidade estética", priorizando aí não mais o artista local, propriamente dito, mas o que poderia determinar as exposições itinerantes oriundas do eixo Rio-São Paulo ou as mostras internacionais. Nesse contexto surgem grupos emergentes influenciados pelas correntes contemporâneas e com ênfase na arte conceitual, como os artistas ligados ao Grupo Camelo. Outro sintoma desse momento é a importância que adquire o "espaço" cultural como formador de novas gerações de artistas e do público expectador. Vale ressaltar o papel investigativo desempenhado pelo Laboratório de Pesquisa Plástica do Instituto de Arte Contemporânea (projeto piloto no Recife Antigo) e, atualmente, pelos cursos avançados promovidos pelo Centro Cultural da Fundaj, ambos na função de catalisadores e responsáveis, também, pelo surgimento de uma massa crítica. De Brennand ao brücke expressionista Atualmente, a pluralidade de linguagens permite dialogar no mesmo tempo e espaço, passando pelas figuras antropomórficas e mitológicas do mestre escultor Francisco Brennand, os figurativos na visualidade da arte popular ou o Recife Graffiti no periférico da cidade. O brücke expressionista na obra de Plínio Palhano, a neofiguração de Alexandre Nóbrega e Ana Montenegro, a pesquisa em novas mídias de Edgar Ulisses, o despojamento formal de José Patrício, as esculturas portáteis de Sebastião Pedrosa ou a abstração geométrica de Eudes Mota, entre outros, demonstram o vigor da representação na arte pernambucana. Finalmente, podemos considerar, sobre a atual arte produzida em Pernambuco, que ela apresenta a ambivalência pós-moderna entre linguagens tradicionais e inovadoras. Além disso contribui para a estética pós-moderna ao fazer referências à sua própria história da arte na busca de uma identidade e ao se abrir às experimentações tecnológicas e a uma diversidade maior, demonstrando com isso a manutenção de uma estética singular como resistência à homogeneização cultural. Reflexos do Mangue em Pernambuco Uma sociedade cuja malha cultural mistura a erudita, a popular e de massa, a artesanal, industrial ou globalizada. Foi nesse cenário, com uma capacidade incomum de mesclar os mais diversos grooves, que o músico Chico Science (em meio a manguezais, caranguejos, aratus e ao som dos tambores de maracatus), movido pela paixão por funk, hip-hop, grafiteiros e pela black music, fez surgir na periferia de Olinda um som singular - hoje, mais do que uma batida rítmica, uma cultura chamada Mangue. A cultura Mangue retrata o imaginário popular, de ícones, mitos, de personagens, becos e avenidas. Os efeitos desse movimento podem ser percebidos, além da música, em outras manifestações estéticas: na moda pernambucana, por exemplo, teve uma influência determinante. O manguefashion extraiu das ruas elementos do gosto e comportamento urbanos, agregando materiais da artesania popular. No cinema a identificação e a forte influência do manguebeat foi concebida por Lírio Ferreira e Paulo Caldas ao realizar o nordestern Baile Perfumado. Já nas artes plásticas a estética mangue veio reforçar o hibridismo e desterritorialização já existente, entre o racional e o afetivo, entre interrupções e retomadas, seja na figuração, na neofiguração, na abstração ou na desmaterialização do formal comum na arte contemporânea. O elemento popular toma força na arte escatológica do Grupo Submarino (do lixo industrial ao objeto em desuso), das personagens satirizadas pelo escultor Evêncio (figuras quase-vivas recriadas do universo urbano), nos materiais plásticos do "acaso" na obra de Fernando Lins (retraços de demolições), também refletido nas imagens captadas em A Corte Vai Passar do fotógrafo Luis Santos (arte e conteúdo) e na matéria prima utilizada pelo artista plástico Marcelo Silveira (objetos do agreste pernambucano representado na arte conceitual). Portanto, o movimento mangue surgido em 1991 é marco na música contemporânea pernambucana, influencia a cultura da moda brasileira, cria reflexos nas artes plásticas e visuais. Mais do que influências e reflexos o movimento mangue, estabelece um novo olhar e sentido para as referências culturais no nordeste do Brasil. Helena Pedra é professora do departamento de Teoria da Arte da Universidade Federal de Pernambuco e consultora em política cultural

* Texto publicado na Revista Veredas – Edição 77 – Rio – Maio 2002